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Ao fim da jornada forçada, o prisioneiro marca, um a um, meticulosamente, na brancura feita de cal das paredes da sua cela solitária, o dia que passa, aproximando-se, traço a traço, inexoravelmente, de dar como expiada a pena que o confina a ele, que ali está e é.

Que importa, se na prisão todos são inocentes e assim o declaram?

Condenado por um crime, que terá cometido ou não, ele conta.

Cada traço é a sua nova caligrafia, uma espécie de eletrocardiograma daquilo que sente e é, um quase nada, flatliner do que dele sobra, na ausência da liberdade.

Liberdade, esse quase nada que lhe é tudo, a cada inspiração mais rarefeito, e que ele respira, ofegante, com crescente dificuldade, como se a sua clausura se situasse no cume da montanha mais alta.

Enquanto não sufoca, desenha, a mão livre e os dedos crispados no pequeno pedaço de pedra negra, que arrancara ao chão da mina esventrada, criando linhas tão juntas quanto lhe é possível, pois o seu medo, o seu grande medo, é que as paredes que, à noite, se parecem estreitar sobre ele, abraçando-o, não cheguem para conter todos os dias que lhe restam em cativeiro.

Sabe que, quando isso acontecer, enlouquecerá, perdido no tempo tornado perpétuo e indistinto.

Por isso resiste, traçando retas paralelas, que se parecem em tudo semelhantes umas às outras, mas que, paradoxalmente, permanecem singulares e, à distância, lhe recordam o bom que é andar à chuva.

Pedro Goulão
Junho 2019